Dizem por aí que o jornalismo morreu. Essa discussão permeia muitos cursos de faculdade e rodas de discussão entre profissionais e talvez não exista uma resposta única. É certo que o sucateamento dos espaços jornalísticos, editorias e os poucos profissionais contratados (insatisfeitos com a remuneração) revelam uma crise no jornalismo, sobretudo, quando falamos sobre a cobertura de cultura. Jornais, programas e rádios extintos demonstram um contexto bastante desafiador e uma perspectiva bastante negativa de futuro. Na contramão, novos formatos surgem a cada dia e ampliam as possibilidades para os independentes, sejam artistas ou escritores.
Debbie Harry - Blondie
Como se consome a informação
É inegável que jornalismo mudou e foi obrigado a se reestruturar nas redes sociais. Não se lê mais o jornal como antes, parcela relevante das pessoas se informa por meio de postagens, seja dos veículos mais relevantes do país, de fotos no WhatsApp ou de páginas de fofoca, como a Choquei.
Um estudo realizado pela Fundamento Análises com apoio da Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER), do Instituto Palavra Aberta e da ESPM, traçou um panorama sobre “Como o brasileiro se informa?” em 2024. Os três meios mais usados são: a mídia tradicional (sites de jornais, revistas, rádios e TV) (29%), sites de notícias (portais online) (24%) e redes sociais (21%). Em comparação com a pesquisa anterior de 2016, as redes sociais tiveram um crescimento de 7%.
Nunca se consumiu tanta informação como nos dias de hoje – o que, em tese, seria o cenário ideal para o jornalismo. No entanto, a qualidade da informação é um tanto quanto duvidosa, se olharmos atentamente. Afinal, qualquer pessoa pode postar o que bem entender e atingir um grande número de pessoas online.
Quando falamos sobre o jornalismo musical, a máxima também vale. Ele se reestruturou, existem diversos novos formatos e meios para escrever, falar e criticar a música. Mas, como sempre, sabemos que a cultura é extremamente menosprezada. O sucateamento dos veículos e das editorias da área é crescente e a própria população parece não entender a importância da cultura e até do lazer.
Dia desses recebi um comentário em um vídeo do TikTok sobre a virada cultural, dizendo que quem ia a tal evento “não era nem gente”. A cultura como um todo é vista como algo não essencial. E isso se estende ao jornalismo focado no entretenimento. Conforme comentam Clara Bicho, Gabriela Matina e Júlia Ennes, as jornalistas da Revista Wanda, “o Jornalismo como um todo é um campo de constante conflito, está sempre ‘em crise’. No cultural e de entretenimento ainda tem a questão extra do estigma de ser sobre assuntos não essenciais, ‘é entretenimento, é diversão, é fácil de fazer’...”.
Mas, muito além dessa desvalorização, existe um nicho bem forte na internet de jornalistas, criadores de conteúdo, pesquisadores e trabalhadores da área que têm feito um papel importante na divulgação da cena.
Jornalismo musical em tempos de redes sociais
Falar sobre música parece simples, todo mundo escuta, todo mundo tem seus artistas favoritos e forma opiniões sobre o que ouve.
Por um lado, as redes sociais e a internet proporcionam a possibilidade de mais pessoas escreverem e explorarem a escrita, a crítica e o falar sobre música. Por outro, “muitas pessoas desqualificadas se propõem a assumir empregos e funções de jornalistas, vemos muitos ‘influencers’ assumindo papeis de jornalistas, é nocivo”, como comentam as autoras da Revista Wanda.
A jornalista de entretenimento Foquinha fala sobre isso no Programa Sem Censura. Segundo ela, passamos por um momento delicado de se informar pelo feed com informações passadas por pessoas que criam conteúdo sem bagagem técnica e teórica, deixando de lado a ética e a responsabilidade social, tão primordiais para o jornalismo. O que é bastante grave, haja vista que a audiência de diversos influenciadores é gigantesca.
Ainda nesse caminho, a Wanda explica que “o jornalismo cultural está muito desvalorizado no Brasil há um tempo já, com toda a questão da desprofissionalização (não “precisar” mais ter diploma de jornalismo), por isso a crítica de arte perde cada vez mais o seu valor diante da sociedade. Hoje em dia, todos têm acesso às redes sociais e ferramentas que podem ser usadas no trabalho jornalístico”.
E aí entramos nas famosas discussões, que são bastante recorrentes no universo da comunicação, sobre profissionalização e especialização, em que muitos se sentem capazes de realizar as demandas apenas porque sabem usar as redes sociais ou porque sabem conversar sobre determinado assunto.
Para a Wanda, alguns pontos são essenciais para abordar a arte de forma especializada e para iniciar no processo de cobertura musical:
Para seguir o jornalismo musical primeiramente, é necessário buscar a profissionalização, fugir da mera opinião ao analisar um objeto, aprofundar-se na crítica. Saber ouvir o que o artista está te contando, seja pela própria arte, seja no momento de uma entrevista. E isso é algo que requer estudo e prática.
Segundo, é importante, claro, o próprio gosto pela arte e pela cultura. É preciso consumir música e ir para além do mainstream. Ouvir gêneros diferentes, de lugares diferentes, tentar acompanhar o que está surgindo, na medida do possível. Também é importante lembrar o básico ao trabalhar com artistas que você está entrevistando. Sempre tenha em mente que seu editor e seu público querem respostas e não concordam apenas com seus interesses pessoais.
E, terceiro, mas não menos importante, saber criticar levando em conta diversos aspectos sociais, buscando artistas, projetos, movimentos que se destaquem por seu valor puramente artístico, não somente pela produção/dinheiro/técnica envolvida.
Complemento dizendo que é importante sempre se atentar que hoje a maior parte das informações dos artistas está disponível “direto na fonte”, ou seja, as comunicações oficiais geralmente já trazem muito conteúdo e são simples de serem acessadas. Portanto, ir a fundo, descobrir o que está escondido nas entrelinhas, ouvir, estudar, puxar o contexto e utilizar bagagem prévia são o cerne do jornalismo musical. E para isso nem precisa de uma formação específica em jornalismo, mas de um aprofundamento teórico e muita pesquisa.
No que diz respeito ao gosto pela arte, Alexandre Gligio, fundador do Minuto Indie, concorda. “Acredito que o ponto principal de tudo pra seguir com o jornalismo musical é qual o seu principio e o que te motiva ainda fazer isso”.
Novos formatos
Lógico que não podemos esquecer-nos da adaptação. Em qualquer profissão, olhar para as tendências, previsões e o que está acontecendo no contexto atual são indiscutíveis. No cenário das redes sociais e da internet, que possibilitam mais espaço para novos nomes despontarem, Ale acredita que “em relação às redes sociais e novos artistas é uma questão de adaptação de novas gerações e esse caos do algoritmo das redes. Tem que se esforçar e sempre se manter atualizado, mas é só sempre se lembrar do por que você faz isso”.
Uma matéria do Trabalho Sujo aborda exatamente essa fase transição, em que precisamos “fazer um verdadeiro trabalho de mineração para descobrir onde se discute a produção musical brasileira atual, quem a discute e em que formato acontece esta discussão”.
Há uns bons anos, o jornalismo se limitava à escrita impressa, rádio e à televisão, sobretudo dos grandes conglomerados de mídia. Hoje, novos formatos levam a divulgação musical além, aplicativos e posts nas redes sociais, grupos de discussão, newsletters, podcasts, revistas digitais, portais de notícia, vídeos, coberturas em tempo real, curadorias em playlists, e por aí vai, como também ressalta matéria do Monkeybuzz. Os artistas podem e devem estar em todos os lugares e se desdobrar de diversas formas para estar onde o público está. “A vasta produção de jornalismo e crítica musicais no país expande-se para atividades que não eram consideradas jornalísticas, como discotecagens, cobertura em mídias sociais, curadorias e direção artística”, escreve Alexandre Mathias na matéria do Trabalho Sujo.
Assim, equipes e assessorias dos músicos buscam esses novos espaços para ampliar a disseminação da obra (eu estou do outro lado do balcão também, então entendo essa pesquisa constante). O impacto acontece em todos os níveis: veículos, artistas, assessorias, público. Todo mundo precisa se adequar.
Ale relembra o histórico dessa mudança. “Lembro que quando comecei, era raro os festivais ou assessorias pedirem ou olharem pra redes. Isso falando de 11 anos atrás. Hoje é impossível não fazer algo nas redes, site ou blog. Antes eles não olhavam e hoje pedem até muito nessas contrapartidas de coberturas de show, por exemplo. O importante é se adaptar porque tem certas coisas que temos que aceitar e jogar esse jogo das redes. Mas ainda acho que falta muito caminho a ser andando e desbravado por ambos os lados. Tem gente ainda se adaptando e ficando pra trás no meu ponto de vista mas pra alguns não. Cada artista, veiculo tem sua visão e enxerga aquilo como algo bom ou ruim. Eu sempre falo que é algo que sempre vai somar pra todos, mas tem que saber como trabalhar em cima disso e o que te agrega. Pois se não fosse as redes sociais o Minuto Indie e o 5 bandas nem existiriam, estamos ai só por conta de ter começado algo 11 anos atrás que ninguém sabia o que era basicamente”.
Estar atento e vigilante, se renovar para evoluir e crescer. E a grande sacada é saber aproveitar o momento com todos os seus pontos positivos. Como uma boa referência de newsletter, “a Wanda surgiu como uma busca nossa por um espaço mais democrático para a escrita. Não é simples conseguir trabalho em veículos mais tradicionais do jornalismo e, mesmo quem consegue, muitas vezes não tem tanta liberdade criativa, principalmente pra quem tá começando. A escolha pela newsletter se deu pela praticidade, podemos publicar nossos textos sem precisar de um domínio de um site, por exemplo”.
Já falamos sobre o crescimento de newsletters nos últimos meses por aqui, que se destacam como um formato de experimentação para diversos autores, pesquisadores e críticos, que chega diretamente aos leitores. “A gente sabe também que hoje rede social é muitas vezes entendida como sinônimo de internet – as pessoas perderam o costume de ‘entrar’ em um site, acessar por contra própria o endereço de um portal de notícias, por exemplo. Então, essa coisa de chegar diretamente pelo e-mail dos inscritos é ótima também, facilita os acessos”.
Apesar da liberdade conferida pelas novas possibilidades, por mais que queiramos fazer as coisas do jeito que gostamos, é necessário entender como chegar a sua audiência de forma responsável. Jornalismo e todos os públicos influentes na mídia carregam um peso enorme na construção social do imaginário popular e na opinião pública (oiii, Walter Lippmann). O clickbait e o sensacionalismo são perigosos e comumente resultam em fake news, que impactam diretamente em diversos setores da sociedade, como estamos acompanhando de uns anos para cá. - E aqui eu nem vou entrar no mérito das representações midiáticas historicamente, que têm um grande marco na cultura popular e que foram (e ainda são) bastante condenáveis em alguns casos.
Retomando nessa de “aproveitar”, você pode ir além. Como foi o exemplo do Minuto Indie, que criou o seu próprio festival. “O 5 bandas veio meio que por acaso e numa insistência de pessoas ao meu redor para fazermos algo naquela época em 2018. A gente tinha um engajamento ótimo e um público forte no Youtube e meio que uma coisa levou a outra. Eu não era muito fã de fazer eventos, sempre tive medo ou até achei que nunca iria dar certo ou me ferrar com grana kkkkkkkkk. Mas depois do primeiro você vai ficando mais malandro entendendo como se fazer o evento e o que pode ser para as pessoas e a cena. Tudo sempre um processo de longo anos e bastante aprendizado, e calma para não queimar largada com o evento/ideia. Ele sempre foi muito bem aceito dentro da cena, porque o diferencial do 5 bandas é apresentar novos artistas e foco em shows. E isso acaba sendo um diferencial dentro da cena dos festivais mas também pro artista que quer tocar para um público interessado nele e não na roda gigante ao lado preocupado em fazer um reels maneiro. Mas é um passo de cada vez para todos entenderem o que é o projeto, seja público, a cena, a indústria e que a gente faça cada vez mais”.
Podemos ainda citar o próprio Popload Festival ou até o selo Balaclava, que expandiu para a revista e para o festival proprietário. Todos esses muito concentrados numa curadoria que foge daquilo que os grandes festivais estão fazendo ao focar em artistas com grande público ou que “hitaram” para atrair um número maior de pessoas, sem pensar em inovar... A proposta é justamente atrair quem gosta de música e quer de fato assistir ao show. Já tivemos um pouco dessa conversa no texto sobre os festivais musicais e ativações de marca.
Sucateamento e críticas
Voltando ao tema Virada Cultural, na coluna de Alê Youssef no Uol Nossa, o advogado e gestor cultural observa a falta de criticidade e apuração na cobertura do evento. Alguns dados, como publicidade e o speech utilizado (afirmando que foi a maior edição da história), o orçamento destinado e a divulgação em cima da hora não foram questionados, apesar de duvidosos. A cobertura, no geral, ressaltou apenas pontos positivos e foi superficial.
Youssef finaliza “fica aqui um chamado para que se criem condições estruturais para que o jornalismo cultural reapareça e faça jus à sua enorme tradição. Essa é uma reflexão que vai muito além da cobertura da Virada Cultural. A responsabilidade e vocação do jornalismo é fundamental para o fortalecimento da nossa cidadania e ampliação do censo crítico em relação às nossas políticas culturais”.
No momento atual, em que nada está muito benéfico para a cultura, exigir profundidade, questionamento e análise crítica são cruciais e podem ter um impacto enorme na valorização da arte no presente e no futuro. O papel do jornalismo é justamente trazer a reflexão.
Hoje, muitos parecem não entender isso. Isso fica evidente quando até mesmo os fã-clubes não aceitam as críticas de jornalismo musical e quem ousa criticar os queridinhos da internet é duramente retaliado. (Podemos explorar isso em outro tema mais pra frente rs).
Além desses problemas, como já comentamos anteriormente, o sucateamento vem para complementar essa crise jornalística. Focando no universo musical, os espaços tradicionais para cobrir a música são cada vez menores e contam com menos pessoas. Quando existem, eles costumam abordar os artistas “de sempre” e muitos têm mais cara de fofoca do que uma análise aprofundada. Lógico que existem exceções, mas a deterioração de alguns espaços é bastante triste.
Para a Wanda, “o primeiro passo para a resistência ao sucateamento do jornalismo cultural e de entretenimento é a defesa da profissionalização – que vai para além de um diploma, mas da construção de um senso crítico, de ética e de repertório. É importante que os veículos (os já tradicionais e também os independentes como nós) se posicionem em defesa de um jornalismo cultural de qualidade. Infelizmente, a sociedade brasileira em grande parte vive os danos decorrentes do movimento político da desprofissionalização do jornalismo no país, das fake news e a desvalorização da arte”.
Elas finalizam, “resistir é importante por isso: para entregar informação, contar histórias, e fortalecer a comunidade artística com respeito aos artistas, aos leitores e a sociedade como um todo, porque arte é vida, é o que nos faz mais humanos”.
Que a gente consiga valorizar, cobrir e disseminar a cultura de forma responsável e acessível para todos, reconhecendo o papel dos veículos tradicionais e dos novos espaços nessa equação. O jornalismo musical se adaptou e certamente vamos acompanhar novas vertentes logo mais.
Qual a sua opinião? Me mande por mensagem!
Finalizo pedindo desculpas pelo atraso. A ideia era que esse tema saísse em maio, mas as últimas semanas foram bem insanas por aqui. Finalmente consegui finalizar e espero continuar com uma recorrência maior em breve.
Também quero enviar um agradecimento especial à minha amiga Camylle Beatriz, que usou a Onda Sonora como referência para um trabalho acadêmico. Camy, tenho muito orgulho da sua trajetória e estou sempre por aqui acompanhando, mesmo que de longe <3
Um beijo e até a próxima!